sábado, 23 de maio de 2009

Cruz --- Fátima a pé

As palavras amontoam-se e torna-se quase impossível descrever o misto de sensações por ter conseguido finalizar uma jornada como esta...

Acompanhava-me já há algum tempo o desejo de cumprir uma peregrinação até Fátima, não fiz promessa e por isso quando comecei a partilhar a minha vontade com os mais próximos ia ouvindo frases como "tu és doida" "não te metas nisso" etc etc mas nem isso me fez perder a ideia :) Comecei por vaguear pela net à procura de organizações, conselhos, testemunhos, e a vontade de experienciar ia crescendo, até que, encontrei uma organização de Braga designada por "Farmácias em caminhada de fé", passei logo à tentativa de encontrar o contacto dos organizadores o que não foi de todo fácil mas consegui. Logo no primeiro contacto, onde falei com a mentora do projecto, Dr Fernanda Santos fiquei ainda com mais vontade de peregrinar, não só pelos traços gerais da organização e ainda mais, talvez pela forma como me transmitiu a vontade que tinha também de cumprir este desejo.

Chegou o dia! 5 de Maio às 21h30, ponto de encontro: Sé de Braga. A peregrinação foi iniciada com uma missa presidida pelo Arcebispo de Braga, D. Jorge Ortiga, onde num jeito muito particular nos transmitiu 3 pontos essenciais para caminhada até Fátima como também para a caminhada da vida:

* Devemos ter sempre presente uma meta, neste caso é o encontro com Fátima, na vida devemos também traçar objectivos e viver com a finalidade de os cumprir.

*"O peregrino deve libertar-se do acidental e caminhar com o essencial." Devemo-nos livrar da carga desnecessária durante a nossa caminhada e carregar apenas o essencial, libertar e perdoar o passado para que possamos viver o presente com ânimo.

*O caminhar com os outros reduz as exigências para além de que, só com a sua ajuda conseguimos atingir os nossos objectivos.

No final de mais uns acertos logísticos deu-se então a partida. Aguardei a passagem do grupo em Cruz. Cerca das 2h30 iniciei eu a minha peregrinação, lembro-me de respirar fundo nos primeiros passos e não querer olhar para trás...6 Km depois já tinhamos o lanche à nossa espera em Famalicão. Correu-me bem este início :) Estava a decorrer a primeira de sete etapas.

As etapas começavam sempre no fim de jantar, as primeiras horas com bastante trânsito, seguidas de horas de mais silêncio e escuridão que me permitiram apreciar coisas que nem me apercebo delas no dia a dia. O céu, as estrelas...o bom luar que quase sempre nos acompanhou...o cheiro que andava no ar...o cheirinho a pão na madrugada.Lembro-me do bom odor a plantas que senti ao atravessar o Porto junto à igreja da Lapa, a paisagem da ponte D. Luís...depois o nascer do dia, parece que deixei de caminhar num túnel escuro e timidamente as coisas começaram a aparecer: as casas, os animais, o chilrear das aves e também o trânsito para dificultar ainda mais o fim das etapas, comboios e comboios de camiões justo na hora onde já custava tanto subir e descer os passeios mas que nos obrigavamos a fazê-lo. A cada manhã bem cedo, começavamos a cruzar-nos com outros grupos, com um ritmo ainda fresco, de quem está a começar, ritmo que tentavamos ir "roubando", como que para andar à boleia no que ainda faltava até à proxima paragem.

Foram duzentos e muitos km, muito tempo a caminhar. Houve momentos de dor, ansiedade, tristeza, alegria. Muito companheirismo, solidariedade e entreajuda. Horas em que conversei com este e com aquele e tentava perceber o que os motivou para a peregrinação...horas de oração e meditação em grupo e também horas em que unicamente me apetecia caminhar mais a sós.

É um caminho que só se percebe fazendo-o! Posso dizer que vi de tudo: desde funcionários de estações de serviço que não servem meia de leite a peregrinos que vêm esgotados e precisam de repôr energias porque dá muito trabalho. Pessoas que querem exigir 10€ de consumo mínimo de entrada num bar aos colegas dos carros de apoio que tencionam apenas comprar tabaco, como vi pessoas que ao pressentirem a nossa passagem junto às suas casas se levantaram da cama apenas para perguntar se precisavamos de ajuda, pessoas que estacionam o carro aqui e ali, tiram da mala uma mesa, rapidamente a montam e começam a perguntar se queremos um café, algo para comer, uma muda de meias,enfim. Foi uma das formas de peregrinar que me comoveu e ainda faz arrepiar.

E por falar em forma de peregrinar, não posso deixar de falar de quem tanto nos ajudou. O César na carrinha de apoio, enfermeiras Helena e Daniela, enfermeiro Ricardo em carros de apoio também e a fisioterapeuta Nélia que aguardava a nossa chegada de cada etapa e que tanto me valeu. São pessoas que tiram férias apenas e só para ajudar, total voluntariado.

Penso nas vezes que me senti tão “pequenina” quando passava por alguém num enorme suplício que para além de carregar a dor transparecia carregar uma enorme preocupação em chegar, tinha mesmo que o fazer custasse o que custasse. Foi difícil ver gente a passo de caracol pois já não havia força para mais, pés completamente em ferida com o calçado já recortado para não pressionar nas partes que estavam pior, pés descalços e gente que não fala durante toda a peregrinação... É incalculável o que leva alguém a prometer tal coisa, limitava-me apenas a estender uma mão, quer para oferecer apoio físico ou apenas psicológico.

As emoções andam mesmo à flor da pele...desde o final da terceira etapa até ao início da quarta inexplicavelmente andei sempre de lágrima no olho e bastava que se dirigissem a mim "baaaahhhh" ainda era pior...não tinha grandes dores e muito menos pensava em desistir...diz quem já estudou comportamentos de peregrinos que há sempre um dia em que a gente bate no fundo e a partir daí tudo corre melhor.Comigo aconteceu isso mesmo. Há uma altura em que tudo passa a ser diferente até a contagem das etapas, em vez de se dizer "ainda" começa a dizer-se "já só falta".

Nunca antes me tinha sentido tão desprendida da minha rotina habitual. Não me ocorria nada mais a não ser ir dando notícias aos que estavam a torcer por mim "deste lado". Só tinha presente os km que tinha a fazer etapa a etapa até chegar ao fim. Quando comecei a sentir que o fim estava cada vez mais próximo a ansiedade já era enorme, a última etapa foi difícil não só pela tal ansiedade, como pelo terreno difícil que fizemos e pelo sono, deu-me cá uma soneira que para além de parecer uma pessoa alcoolizada a caminhar,desconfio que ainda passei pelas brasas em andamento,nunca pensei que fosse possível mas naquela situação a gente parece que liga o automático nas pernas para "comer alcatrão" e desliga o resto.

Na última etapa, à medida que as horas e os km avançavam, começaram a aparecer as primeiras placas já com a indicação "Fátima". Fomos chegando aos poucos á rotunda do peregrino. Nesse sítio, todos se cumprimentaram e já foi muito difícil conter as lágrimas, que alegria! Estavamos todos ali! Seguimos todos juntos a cantar, e posso dizer que aqueles últimos metrinhos até ao recinto foram de uma emoção tal que ainda agora me faz arrepiar. Admiro quem foi capaz de rezar e cantar até ao destino final, pois a emoção tomou conta de todos.

Quando atravessei a nova catedral e vejo todo aquele recinto à minha frente, bem!!! Que emoção! Só falta ou ainda falta isto? Será que ainda tenho forças para estes metros? É um olhar para trás e ver tudo pelo que passei até ali, é o ter conseguido chegar e completar este objectivo. Ficou ali muito... Nunca conseguirei transmitir o que senti. Hoje sei o que é ir até Fátima a pé! É muito mas muito mais do que caminhar até lá. É das experiências mais enriquecedoras que já vivi, é humanamente muito gratificante. Fica muita coisa daquela experiência.

Sei que já me estendi demasiado neste texto mas acreditem que se justifica e não deixa de ser uma breve conclusão :)

Muito obrigado a todos que me apoiaram durante a peregrinação, quer aos colegas da caminhada, quer aos que sempre mandaram apoio via telemóvel e um especial a quem me foi visitar.

Fica o desejo de repetir! Valeu muito a pena e estou muito feliz por ter experiênciado.